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terráHQueos ENTREVISTA com MARCIO RODRIGUES

Hoje o espaço é especialmente dedicado a entrevistar Márcio Rodrigues, historiador, com mestrado em História pela UFMG e recém-aprovado no Doutorado em História Social da Amazônia, na Universidade Federal do Pará. Nascido em Belo Horizonte/MG em 1982,  justamente na semana em que completou 35 anos, nos presenteou com essa entrevista, antecipando o alto nível do Curso de História e Linguagem dos Quadrinhos que irá ministrar no Centro Cultural Odylo Costa Filho que tem início no dia 4 de março. Veja por que ele se define como um estudioso dos quadrinhos. 

O conteúdo ficou tão legal e extenso que tive que editar com 2 partes, aqui vai a primeira:

Você lembra como e onde começou o seu interesse pessoal por quadrinhos ? 
Meu interesse por quadrinhos começou desde a infância.Em 1987 meu primeiro contato com HQs de super-heróis. Tenho lembranças mais precisas de ter lido foi uma edição do Super-Homem. A partir desse primeiro contato, comecei a desenhar também. Atualmente não me dedico ao desenho, apenas à pesquisa. Se é para considerar algo que tenha me marcado na infância e que tenha contribuído para aguçar meu interesse pelos quadrinhos, sem dúvida, foram as publicações veiculadas na extinta revista DC2000. Depois disso, com os poucos recursos que na época dispunha passei a colecionar. Aos poucos fui acrescentando às leituras produções fora do eixo dos personagens com super-poderes. Hoje tento ler de tudo, sem restrições.

 Em que momento da sua vida entendeu que deveria levar a coisa a sério como um pesquisador, transformando uma paixão ou hobby juvenil em objeto de seu estudo?
Quando criança eu tinha o terrível hábito de cortar com tesoura os quadrinhos que passavam pela minha mão e colar quadros ou páginas inteiras em um caderno. Em seguida, pesquisava com os poucos recursos que tinha sobre tal e qual personagem. Não havia a internet, tal como a concebemos hoje. Escrevia um textinho curto ao lado de cada recorte. Tenho esse caderno até hoje. Hoje interpreto essa curiosidade juvenil como importante para a minha base como leitor e pesquisador. A partir dela criei mecanismos de relacionar produções, de ter critérios minimante razoáveis para avaliar se determinado título valia a pena ou não ler e de procurar maiores informações sobre autores. Bem, sou de família humilde, com pais com pouca instrução. Quadrinho era uma regalia que se eu quisesse ter, deveria trabalhar para comprar. Em 2003, no meu 2º período do curso de História, me matriculei em uma disciplina sobre os usos da fotografia como fonte documental. Também Contei com o incentivo de uma outra professora, a historiadora Regina Horta Duarte (pesquisadora no campo da História Ambiental). Poucos professores naquela época incentivavam o uso de fontes com as quais não tinham menor contato, apesar do campo da História usar da falácia de que toda e qualquer fonte pode ser examinada, sem menor objeção. Durante a graduação meu interesse pelos quadrinhos era visto por meus colegas e professores como algo curioso ou mesmo com certa aversão. Lembro que até professores queridos chegaram a me desestimular, falando que a ideia de pesquisar quadrinhos seria como "um tiro no pé". Naquele contexto de início de pesquisa percebi que apesar de sua incontestável presença na contemporaneidade, as histórias em quadrinhos nem sempre foram bem vistas pelos historiadores ou mesmo pelos demais estudiosos das humanidades. Não foi sempre que se atribuiu a elas um caráter sério ou mesmo uma função política, mesmo que evidentes. Talvez isso esteja associado a uma trajetória histórica marcada por um preconceito, que as relegou, por diversas ocasiões, à condição de passatempo trivial, uma forma de distração e divertimento sem maiores ambições. É preciso uma certa dose de teimosia para ser pesquisador de quadrinhos. 

Fale um pouco da sua trajetória acadêmica com quadrinhos. 
Pesquiso Quadrinhos como fonte histórica desde meados da minha graduação. Estudei um pouco a figuração do cientista e da ciência nas HQs. Todavia, como sou licenciado em História,  não havia a exigência de um trabalho de conclusão de curso. Acabei apresentando algo sobre o assunto em congressos acadêmicos. No que tange aos quadrinhos, não contei com muita orientação durante a graduação. Como HQs é um objeto transnacional, tive a preocupação de aprender outras línguas durante a graduação. Como não contava com muitos recursos financeiros, me matriculava em disciplinas eletivas e com o dinheiro das bolsas de pesquisa que tinha pagava aulas particulares de idiomas. Posso falar com tranquilidade que investi muito na minha formação na época da graduação. No mestrado, desenvolvi uma pesquisa sobre as representações políticas do período da Guerra Fria nos quadrinhos. Minhas fontes de pesquisa acabaram sendo bem numerosas, embora eu tenha focado parte considerável do meu trabalho nos quadrinhos do roteirista britânico Alan Moore.  A partir dessa pesquisa, comecei a sistematizar estudos no campo da História Política, tendo os quadrinhos como fonte principal. Atualmente fui aprovado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia pela Universidade do Pará e começarei a desenvolver uma tese de doutorado bem extensa sobre as representações da Amazônia nas Histórias em Quadrinhos da década de 1970 aos dias atuais.Fui também durante dois anos professor da Faculdade de Educação da UFMG, responsável pela área de Ensino de História e ministrei disciplinas sobre quadrinhos para alunos da graduação de diferentes cursos de graduação. Ministro regularmente e em diferentes estados (embora resida no Maranhão) cursos teóricos sobre os usos e possibilidades das Histórias em quadrinhos, em particular, nos campos do Ensino de História, da História Política e da História Ambiental. Já devo ter ministrado até hoje de forma comprovada por certificados uns 50 cursos. Em virtude da minha experiência como ministrante por 7 edições do curso de Extensão  Quadrinhos, Linguagem e História”, recebi convite para mediar uma das rodas de conversa do Festival Internacional de Quadrinhos de 2015, em Belo Horizonte. Foi uma mesa sobre os vínculos existentes entre ficção científica e os quadrinhos, que contou com a participação da colorista Cris Peter, do Eduardo Schaal, do Estevão Ribeiro e do Will.  Já tive um texto selecionado para compor o Intersecções Acadêmicas - Panorama das 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, da Editora Criativo. Estou para ter um texto publicado como capítulo em um livro internacional sobre super-heróis e o campo dos “animal studies”.   Ainda sou Membro-diretor e sócio da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS). Pode parecer muita coisa, mas tenho ainda um longo percurso pela frente.

O que o trouxe para São Luís do Maranhão?
O principal e único motivo pelo qual decidi residir em São Luís é meu relacionamento. Há um ano optei por morar na ilha, após um período de relacionamento a distância. Se eu não tivesse conhecido minha companheira em virtude de um evento acadêmico certamente ainda estaria morando em Belo Horizonte. Creio que minha trajetória pessoal seria outra. Na nossa cultura, infelizmente, acontece de uma companheira se ver forçada a repensar a trajetória profissional e mudá-la completamente para acompanhar o parceiro (em caso deste ter que mudar ou viver em outro estado). Minha companheira já tinha uma situação de trabalho estável na cidade e família por aqui. Como ainda estou construindo minha trajetória profissional no campo dos quadrinhos optei por sair de Belo Horizonte. Larguei meu emprego de professor da rede municipal e vim para cá com meus quadrinhos.

Qual a sua impressão da cidade? 
Tenho boas impressões de São Luís...Longe de ter uma visão estritamente ingênua, de visão de quem chegou de fora e só percebe o que lhe convém.  Considero aqui um campo fértil de ideias e de pessoas. Digo isso pelo contato que tenho com algumas pessoas, pelos locais que transito. Creio que o Centro Histórico poderia ser melhor aproveitado no que se refere à questão cultural de maneira geral. Em particular, no que tange aos quadrinhos, São Luís tem problemas estruturais similares aos de qualquer outra grande capital. Aqui ainda se pode ter uma vida de qualidade. 

Você já se sente adaptado a cidade, ou vai demorar um pouco mais? 
Me sinto relativamente bem adaptado. Por ser recém-chegado à cidade obviamente tenho meus estranhamentos. Antes de resolver morar definitivamente em São Luís, já havia passado por aqui em 4 ocasiões. Em alguns momentos, cheguei a passar meses. Isso foi pensado com minha companheira como uma forma de eu me adaptar ao clima. Nos primeiros meses sofri imensamente com o calor. Sou o mineiro que mais gosta de frutos do mar. Particularmente, gosto muito da culinária local, com exceção do cominho. Gostei da forma como o maranhense de raiz costuma rejeitar a cultura do fast food. No que tange à cultura quadrinística da cidade, confesso que estou ainda com alguns estranhamentos e buscando conciliar. 

E quais( estranhamentos) seriam?
Não entendam como uma crítica dura, mas como uma sugestão para expandirmos os nossos horizontes. De modo geral, temos aqui uma cultura quadrinística que privilegia quase que exclusivamente HQs de super-heróis norte-americanos, desconsiderando outras tradições. Como leitor e estudioso, considero que quadrinhos não devem ser reduzidos unicamente ao gênero super-heróis. Apesar de ler revistas de personagens consagrados procuro ampliar meu leque de leitura, mas talvez nem seja interessante me considerar como um modelo. Sou uma pessoa que investiu (ou perdeu muito do tempo) com os quadrinhos. As pessoas talvez não tenham tempo para aprofundar em leituras, ainda mais por terem ocupações das mais variadas. Além disso, cada um faz o que quiser com seu ganha-pão. Pode se argumentar que só chega esse tipo de material nas bancas daqui, mas quem realmente se interessa pelos quadrinhos deveria buscar outras referências além do modelo tradicional? A vinda de livrarias como a Leitura (que é também lá de Belo Horizonte) proporcionou a chegada de outro tipo de material (não na mesma escala do que chega em outras regiões do país), mas conversando com a galera que lê quadrinhos daqui, percebo muita resistência da maioria com outras tradições quadrinísticas. Argumenta-se sobre o preço, mas tem quadrinho de super-herói meia boca,  que todo mundo fica doido para ter que é bem mais caro do que uma produção que ninguém dá muito interesse (só pelo fato dos personagens não terem uniformes coloridos). Creio que deveríamos sair da zona de conforto. Há ainda aqui uma divisão entre leitores de super-heróis e os dos quadrinhos japoneses. Particularmente, tal dicotomia nem deveria existir e nem ser reforçada. Comics e mangá são quadrinhos! Há uma produção local considerável, mas os leitores de quadrinhos da ilha parecem não dar muita atenção ao que se produz por aqui. Quando tive contato pela primeira vez com quadrinhos produzidos no Maranhão, não foi nem em Minas Gerais, mas em outros estados. A participação feminina aqui na produção é inexpressiva, ao contrário de outros estados. Quando se toca em questões sobre a presença, ou melhor, a não-presença de mulheres no cenário dos quadrinhos em São Luís, chega a provocar incômodo entre o público leitor (que aqui é infeliz e essencialmente masculino). Bem, se queremos ter um grande evento de quadrinhos em São Luís é preciso aprendermos a dialogar com as mulheres e incentivar que elas produzam também. O que vejo como positivo aqui é a procura de eventuais interessados nos quadrinhos entre o público acadêmico. Pessoas interessadas em dialogar sobre a importância social das Hqs.

Qual a sua expectativa para o perfil do aluno do Curso que você está oferecendo pra cidade? E Em que você acredita que o seu Curso pode contribuir para o movimento cultural de quadrinhos de São Luís? 
A expectativa é de que o curso seja de interesse para os já  iniciados e não-iniciados no universo dos quadrinhos. Delimitei a faixa etária para acima de 16 anos, justamente para romper com a ideia frágil de que HQs é um gênero direcionado exclusivamente ao público infanto-juvenil. Espero que professores da educação básica e futuros pesquisadores se inscrevam. Tenho muito interesse em estabelecer diálogos e contribuir com pesquisas acadêmicas e experiências no campo do ensino. No curso atentarei para o fato de que o gênero HQs não é restrito apenas aos títulos de super-heróis e que diferentes tradições quadrinísticas serão apresentadas. Espero que o público aficionado com super-heróis se matricule e ao final consiga perceber que o universo dos quadrinhos é muito mais amplo. Quadrinho bom não é aquele que tem porrada, sexo e personagens de collant. O curso pode contribuir para o movimento de quadrinhos se os eventuais interessados do campo da produção, tiverem uma postura mais receptiva com teorizações. Creio que o universo da teoria não está dissociado do terreno da prática... Bem, eventos de quadrinhos costumam contar com a participação de estudiosos. Espero que as reflexões desenvolvidas no curso sejam aproveitadas para sistematizarmos eventos e grupos de pesquisa sobre quadrinhos.


Continua na próxima edição com ENTREVISTA na Coluna TerráHQueos - A Semana dos Quadrinhos na Terra das Palmeiras de Adriano Leonardo no Jornal Extra de São Luís-MA/ aos domingos e segundas nas bancas e segunda a noite, o mesmo conteúdo aqui no blog.



Público-alvo: Interessados no universo dos quadrinhos com faixa etária acima de 16 anos; professores e público universitário

Tópicos e carga horária:

1.Distinções e semelhanças entre charge, caricatura, cartum, Histórias em Quadrinhos e outros objetos da cultura visual - 4 horas
2. Abordagem das convenções particulares das Histórias em quadrinhos - 6 horas
3. Pressupostos teórico-metodológicos para o uso dos quadrinhos como fonte de pesquisa e no contexto escolar - 5 horas
4. Trajetórias históricas dos quadrinhos - 8 horas
4.1. Trajetória do preconceito contra os quadrinhos - 3 horas
4.2. Comics/ Problematizando o conceito de Graphic novels - 6 horas
4.3. Quadrinhos underground - 3 horas
4.4. Manga/Manhua/Manhwa/Lianhuanhua: quadrinhos de tradição oriental - 6 horas
4.5. Quadrinhos europeus - 6 horas
4.6. Quadrinhos latino-americanos (tradições do Brasil, Argentina, Caribe e Chile) - 7 horas
4.7. Quadrinhos africanos: desconstruindo estereótipos acerca da África e das HQs africanas - 4 horas
5. Como armazenar e conservar Histórias em quadrinhos - 2 horas

Carga horária total do curso: 60 horas

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